Dinâmica do cuidado a crianças em situação de violência intrafamiliar na Atenção Básica: um olhar sobre as relações de poder e a governamentalidade em Salvador-Bahia

Abstract

A violência interpessoal é um fenômeno social e cultural complexo, multideterminado, que sempre esteve presente nas sociedades, ainda que invisibilizado perante outros problemas. Crianças costumam ser vítimas privilegiadas pelo grau de fragilidade e dependência próprios da infância e por terem menos poder na hierarquia familiar. O cuidado em saúde é um ato de natureza compreensiva, realizado através de mediações empáticas nos encontros entre profissionais e os usuários. Ao eleger a Atenção Básica como cenário de estudo, o autor desta pesquisa tomou as ideias de Michel Foucault sobre poder como referencial teórico, bem como o conceito de governamentalidade. Com o objetivo de analisar a dinâmica do cuidado a crianças em situação de violência intrafamiliar nos contextos de trabalho da equipe multiprofissional da ESF, acompanhou por oito meses o trabalho de equipes implantadas em duas Unidades de Saúde da Família (USF), em bairro popular de Salvador-Bahia. Utilizou abordagem qualitativa, descreveu e analisou três casos concretos de vítimas infantis que receberam cuidados nessas unidades. Os dados foram produzidos no campo a partir da observação direta, diário de campo e entrevistas, resultando em 71 relatos e 19 entrevistas que foram codificadas e analisadas com a ajuda do software ATLAS.ti. A partir da descrição do território onde se localizam as USF, do contexto de violências que permeiam a vida e o trabalho dos profissionais nesses serviços, os resultados desta pesquisa apresentam nuances do cuidado a crianças em situações de violências físicas, psicológicas, sexuais e negligências. A análise se concentra nos atos de cuidado das equipes da ESF aos casos descritos, onde se discute o poder exercido por profissionais e por familiares que conduzem o cuidado nos casos. Os atos desempenhados através das consultas, visitas domiciliares e reuniões de equipe se mostram relevantes nesse contexto, bem como a própria organização dos serviços, operada pelas estratégias de governamentalidade via programas implantados nas unidades de saúde. Tais condicionantes concorrem para que certos atos de cuidado sejam desempenhados pelos profissionais no bojo dos parâmetros biomédicos. Este fato alia-se ao escasso repertório dos profissionais para lidar com diferentes modalidades de cuidado parental e resulta em negação, em evasivas e no efeito de invisibilidade das violências que envolvem crianças nesses serviços de saúde.