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Adaptado por: Beatriz Meneses

Adaptado em: Outubro de 2023

CÔRTES, Sara da Nova Quadros. Direito Achado na rua: por que (ainda) é tão difícil construir uma teoria crítica do direito no Brasil?. In: SOUZA JUNIOR, José Garaldo (Org.); COSTA, Alexandre Bernardino (Org.); [et. al]. O Direito Achado na Rua: introdução crítica ao direito como liberdade. Volume 10. Brasília: OAB Editora; Editora Universidade de Brasília, 2021. p. 549-563.  

DIREITO ACHADO NA RUA: por que (ainda) é tão difícil construir uma teoria

crítica do direito no Brasil

Sara da Nova Quadros Côrtes [Nota ]

O otimismo não é uma celebração mas uma orientação para uma ação transformadora. José Geraldo de Sousa Júnior ao “Brasil de Fato” em fevereiro de 2020.

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Em tempos espinhosos e incertos trago nesta comunicação perguntas espinhosas. Boaventura Santos em sua obra “A crítica da razão indolente” trazia esta perplexidade qual seja: “Por que é tão difícil construir uma teoria crítica?” (SANTOS, 2001, p. 23). Para nos orientar este autor, prudentemente, alerta “Não há conhecimento em geral, tal como não há ignorância em geral.” Sendo assim “O que ignoramos é sempre a ignorância de uma certa forma de conhecimento e vice-versa o que conhecemos é sempre o conhecimento em relação a uma certa forma de ignorância”. (SANTOS, 2001, p. 29). Neste momento temos a tarefa de perguntar quais as formas de ignorância se relacionam com o que conhecemos nestes 30 anos.

Proponho pensar que, dentre os temas que mais ignoramos, mesmo na teoria crítica do direito é o tema da escravidão e do racismo estrutural, das lutas dos escravizados e quilombolas, e, em especial, da agência intelectual dos negros e negras ao longo da história do Brasil e, por isso, tem sido tão difícil construir uma teoria crítica, de base empírica e, singularmente, brasileira. Quando estudamos a vinda de imigrantes nos ensinam como algo positivo pois a chegada dos imigrantes muito agregou culturalmente ao país. Não estudamos, como aponta Flávio dos Santos Gomes o texto das chamadas “instruções” dos Fazendeiros de Vassouras, em 1854, acerca do controle social da vida escrava e das consequentes mudanças no cotidiano da relação senhor/escravo”. Segundo este historiador

[Inicio da citação] A comissão permanente nomeada teria como principal função fiscalizar e ‘empregar os últimos esforços’ no sentido de os fazendeiros adotarem as ‘medidas’ deliberadas. As medidas eram constituídas de seis itens. O primeiro dizia respeito ao emprego de colonos nas fazendas. Segundo percepções dos participantes da reunião, fazia indispensável que os proprietários em Vassouras mantivessem um número relativo de pessoas livres trabalhando e/ou morando nas suas fazendas. Era inclusive indicada a proporcionalidade necessária: ‘uma pessoa livre por doze escravos; duas por 25, cinco por cinquenta, sete por cem, dez por duzentos; e daí para cima mais duas pessoas livres por cada cem escravos que acrescerem”. Além disso, frisavam eles que essa medida tinha um caráter econômico, no caso ‘mercantil’, e também aquele em “relação a segurança”. (...) O item seguinte das ‘instruções’ corrobora a nossa interpretação. Dizia então ‘[...] segundodevem igualmente os fazendeiros ter armamento correspondente ao número correspondente ao

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número de ‘pessoas livres, depositado em uma casa-forte e sempre pronto para qualquer ocorrência”. (GOMES, 2006, p. 238-240). [Final da citação].

Alerta o autor para formação de uma milícia leal branca e fundamentalmente antiescrava, pois ao enfatizarem a colonização, os fazendeiros destacavam a questão da segurança e da prevenção contra insurreições escravas, pois, segundo o autor estava nas instruções dos Fazendeiros de Vassouras em 1854 que

[Inicio da citação] O escravo é o inimigo inconciliável, a adição de mais alguma libras de pólvora ao paiol presta a fazer explosão, entretanto que o colono é um braço amigo, um companheiro de armas, com lealdade se pode contar na ocasião da luta: os interesses são comuns. Quantos, no momento do perigo não dariam metade da sua fortuna para terem a seu lado alguns colonos que os defendessem da horda bárbara sequiosa de vingança. (GOMES, 2006, p. 240). [Final da citação].

Conclui o autor que este momento é fundador não somente da relação entre senhores, agregados e escravos, mas também de uma guerra entre brancos e negros, europeus e africanos.

Em que medida a Universidade foi até aqui o espaço social privilegiado de produção de geração e geração de brancos descendentes destes colonos (portugueses, italianos, alemães, espanhóis, franceses) cumprindo a profecia desejada pelos Fazendeiros de Vassouras? Estes que propuseram, no século XIX, o financiamento de mão de obra branca para formar uma massa de trabalhadores "pois na hora do grande conflito "eles (os brancos) saberiam de que lado ficar”. Hoje esta profecia se traduz na inércia do campo progressista diante do genocídio dos jovens negros em periferias urbanas e, ainda, nos discursos e práticas meritocráticas. Importa ter lente para ver - os conflitos atuais como, por exemplo, a tensão (acadêmica, intelectual, política e judicial) na implantação das cotas na graduação e pós-graduação e das cotas para docentes - o significado racista. Como a branquitude tem se revelado na sua melhor forma racista neste cotidiano de burlas visíveis e invisíveis, sorrateiras, por vezes cínicas, por não ter se convencido daquilo que o Legislativo, Judiciário e Executivo se dobraram por pressão dos movimentos negros, mesmo que provisoriamente: a revisão da concepção de igualdade frente a desigualdades raciais. [Nota 1]

Thula Pires (2020) em recente debate sobre Judicialização da Política e politização do Judiciário no Seminário “Democracia em Colapso?” traz o tema do genocídio negro e indígena em curso ininterrupto, nestes 30 anos de Constituição, e, citando Edson Cardoso explicita "o sangue preto e sangue indígena sempre foram para todos os grupos políticos a moeda de troca da governabilidade no Brasil". Afirma ainda que, “nenhum grupo político abriu mão do capital político de sujeição, subordinação e negociação a partir de sangue preto e sangue indígena” (PIRES, 2020). Não precisa ir muito longe para ver o reduzido número de desapropriações de terra, demarcação de territórios quilombolas, demarcação de terra indígena em período chamado democrático.

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No que nos cabe neste trabalho penso ser importante levantar agendas de pesquisa que possam perguntar sobre o sentido metodológico e político do elo “achado” do “Direito Achado na Rua”, não para, numa erudição estéril, criar questiúnculas metodológicas, mas sim para perguntar quem achou o que e onde? Esta questão alimenta um imaginário para dar vida longa a esta que, se configura, ainda hoje, como uma das mais potentes e permanentes escolas de pensamento crítico pois articula e orienta gerações na atuação da assessoria jurídica aos movimentos sociais. Em tempos de rupturas sociais e políticas profundas o questionamento sobre o “sujeito que acha” e qual o sentido do “achado” são tão importantes quanto o debate sobre o “direito” e a “rua” para alimentar uma vida longa para esta escola.

Roberto Lyra Filho já nos dava pistas ao tratar de ideologia, privilégios e arbítrios na formulação do direito e antidireito como concreto pensado, dialeticamente, afirmando que

[Inicio da citação] Pense o leitor na energia com que o racista proclama a “superioridade” do branco sobre o negro; com que o machista denuncia a “inferioridade” da mulher diante do homem; com que o burguês atribui ao “radical” o rompimento da “paz social” (que é, na verdade, o sossego para gozar, sem “contestação”, os seus privilégios de classe dominante). (LYRA FILHO, 1982, p. 19-20). [Final da citação].

Nesta sua obra “O que é Direito?” o autor afirma que

[Inicio da citação] De qualquer maneira, em sistema capitalista ou socialista, a questão classista não esgota a problemática do Direito: permanecem aspectos de opressão dos grupos, cujos Direitos Humanos são postergados, por normas, inclusive legais. Já citamos a questão das raças, religião, sexos – que hoje preocupam os juristas do marxismo não-dogmático (LYRA FILHO, 1982, p. 19, grifo nosso). [Final da citação].

Complementa ainda que “Quando falamos em Direito e Antidireito, obviamente, não nos referimos a duas entidades abstratas e, sim, ao processo dialético do Direito, em que as suas negações, objetivadas em normas, constituem um elo do processo mesmo e abrem campo à síntese, à superação, no itinerário progressivo.”

Nesta dialética social do direito insere o conceito de direito “como modelo avançado de legítima organização social da liberdade” sendo este (o debate da liberdade) o principal legado desenvolvido na obra de José Geraldo de Sousa Junior [Nota 2] que, hoje, reconhecemos aqui neste seminário “O Direito como liberdade”. Importante trazer o texto onde está inserido o conceito:

[Inicio da citação] Justiça é Justiça Social, antes de tudo: é atualização dos princípios condutores, emergindo nas lutas sociais, para levar à criação duma sociedade em que cessem a exploração e opressão do homem pelo homem; e o Direito não é mais, nem menos, do que a expressão daqueles princípios supremos, enquanto modelo avançado de legítima organização social da liberdade. Mas até a injustiça como também o Antidireito (isto é, a constituição de normas ilegítimas e sua imposição em sociedades mal organizadas) fazem parte do processo, pois nem a sociedade justa, nem a Justiça corretamente vista, nem o Direito mesmo, o legítimo, nascem dum berço metafísico ou são presente generoso dos deuses: eles brotam nas oposições, no conflito, no caminho penoso do progresso, com avanços e recuos, momentos solares e terríveis eclipses (LYRA FILHO, 1982, p. 99). [Final da citação].

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        Do ponto de vista metodológico e político podemos afirmar que Justiça é justiça história e, portanto, só há justiça com verdade histórica estando aqui o déficit teórico metodológico do campo da teoria crítica em geral e do direito no Brasil. O próprio autor nos indica o método

[Inicio da citação] Direito é processo, dentro do processo histórico: não é uma coisa feita, perfeita e acabada; é aquele vir-a-ser que se enriquece nos movimentos de libertação das classes e grupos ascendentes e que definha nas explorações e opressões que o contra-dizem, mas de cujas próprias contradições brotarão as novas conquistas (LYRA FILHO, 1982, p. 99). [Final da citação].

Importa aqui refletir sobre este principal legado que, ontologicamente, caracteriza o direito que é o debate sobre a liberdade. Uma boa localização do tema podemos encontrar em Maria Sueli Rodrigues de Sousa (2019) ao prefaciar a Obra “Constitucionalismo e Quilombos: famílias negras no enfrentamento racismo de Estado” afirmando que:

[Inicio da citação] A obra faz fissura na narrativa oficial de nação por tematizar liberdade, igualdade e propriedade, o que interpreto como evidência de que as categorias têm sido apresentadas como erro semântico, ou a racialização apagou mais da metade da população brasileira e a maior parte da humanidade, considerando que o afirmado como liberdade, igualdade e propriedade não alcança a população não branca. (SOUSA, 2019, p. XXIV, grifo nosso). [Final da citação].

Importa aqui reter que não há como construir uma teoria crítica do direito sem racializar, ou seja, sem tomar raça como conceito orientador da construção da narrativa da nação brasileira e suas relações com terra e trabalho, temas centrais de volumes do Direito Achado na Rua.

A referida autora busca tematizar os sentidos e arrazoado que funda o “apartamento racial que distancia a população não branca do universo categorizado”. Ao tematizar a liberdade aproxima-se do caminho crítico do direito achado na rua ao afirmar que

[Inicio da citação] Os sentidos cultivados como liberdade trazem em comum sua abstração: a liberdade como ideia ou cumprimento das regras ou causalidade da vontade (KANT, 1980); como negadora da liberdade substancial (MARX, 1989), sem a precisão do que seja esta; como sentido da política (ARENDT, 2000). A abstração ou falta de precisão semântica é enfrentada ao enfrentar a luta pelo território como empreendida pelos afro-brasileiros como luta por pertencimento à comunidade política brasileira. (SOUSA, 2019, p. XXIV). [Final da citação].

Podemos destacar aqui que também está em curso uma luta por pertencimento à comunidade acadêmica brasileira que não significa apenas compor o corpo discente. Ao problematizar a “díade liberdade como oposto da escravidão” afirma que tratando-se de conceito ocidental não condiz com os sentidos acionados pelas sociedades africanas:

[Inicio da citação] Argumentam que ‘no conceito ocidental, a antítese de escravidão é liberdade significa autonomia e falta de restrições sociais. Entretanto na maioria das sociedades africanas, a liberdade não está em afastar-se numa autonomia sem sentido e perigosa, um poder – um apego que ocorria dentro de arcabouço hierárquico bem definido. É nesta direção que o estrangeiro comprado teria de mover-se para não reduzir sua marginalidade inicial. Aqui a antítese de escravidão não é liberdade no sentido de autonomia, mas sim pertencer, fazer parte. (COOPER; HOLT; SCOTT apud SOUSA, 2019, p. XXIV). [Final da citação].

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Conclui a autora que “o sentido da liberdade como pertencimento à comunidade política, além de confrontar a pretensa universalidade ocidental, traz a materialidade inexistente no conceito de liberdade liberal denunciada por Marx”. Sendo assim não garantir o pertencimento territorial é manter a condição de escravização. Quais os sentidos em não garantir o pertencimento acadêmico, epistêmico e metodológico. Essas são as questões teóricas para uma teoria crítica do direito no Brasil.

A Universidade assim como o direito no modo como o conhecemos são instituições modernas. Susan Buck-Morss num texto denominado “Hegel e o Haiti” afirma que “O paradoxo entre o discurso da liberdade e a prática da escravidão marcou a ascensão de uma série de nações ocidentais no interior da nascente economia global moderna.” Aimé Cesaire denominado “profeta do regresso” no seu “Discurso sobre colonialismo” dirige um discurso aos intelectuais burgueses sobre “processo dos valores da Europa capitalista responsável pelo empreendimento etnocidário qual seja a colonização.” (CESAIRE, 1978) Devemos considerar com Amilcar Cabral que “a libertação nacional de um povo é a reconquista da personalidade histórica deste povo, é seu regresso a história pela destruição da dominação imperialista a que esteve sujeito”. Assim poderemos ver que o próprio processo de construção e a própria denominação de “Constituição Cidadã” não deu conta de reconhecer no seu preâmbulo a escravidão optando por inserir “DEUS”. Ao não racializar não se conseguiu até aqui explicitar as políticas sociais como políticas reparatórias da escravidão pois há um enquadramento de direitos de minorias, lutas setoriais ou mesmo identitárias.

A liberdade na sua dimensão de reconhecimento do direito ao trabalho não foi garantida às empregadas domésticas, nem mesmo garantindo a jornada de trabalho. O parágrafo único do artigo 7ª da CF/88 ao não inserir o inciso XIII qual seja, “XIII - duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais” perpetua o empreendimento etnocidário da colonização, como a face cruel da modernidade. Se pensarmos a liberdade na dimensão de pertencimento a um território o que dizer de um texto constitucional que no conjunto textual principal sequer traz a categoria “quilombo”? A Constituição quando trata no texto principal é no artigo 216 - § 5º como “reminiscências históricas dos antigos quilombos.” Quando reconhece o direito a terra é no “Ato das Disposições Transitórias como algo remanescente e transitório, sem explicitar a “personalidade jurídica histórica” dos quilombos. Reconhecer esse artigo 68 como avanço agrário e fundiário não implica silenciar sobre o racismo institucional da formulação.

A dialética social do direito evidencia que, mesmo com o racismo inscrito no silêncio de mais de 100 anos num texto constitucional, a organização social da liberdade, a resistência e voz dos quilombolas se faz ouvir, e o sujeito coletivo de direito se constitui, mas a morosidade do Estado brasileiro na realização do direito dos quilombolas a titulação dos seus territórios continuou por 30 anos. Segundo João Aparecido dos Santos Oliveira o processo de titulação dos territórios quilombolas no Brasil tem acontecido de forma absurdamente lenta. Franciele Petry Schramm, em matéria publicada pela ONG Terra de Direitos, em 12 de fevereiro de 2019, afirma que “atualmente existe 1.716 processos administrativos, 37 para titulação de territórios quilombolas abertos no Incra e apenas 44 comunidades quilombolas tituladas pelo Instituto em 30 anos da Constituição Federal de 1988, sendo 23 tituladas apenas, parcialmente. (OLIVEIRA, 2020, p. 37).

Destaca-se que: “considerando o ritmo de titulações desde então, serão necessários 1.170 anos para que todos 1.716 processos para titulação dos quilombos abertos no Instituto sejam concluídos”

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(SCHRAMM apud OLIVEIRA, 2020, p. 42). Enfatiza a autora, a existência de 3.212 comunidades quilombolas reconhecidas pela Fundação Cultural Palmares – FCP.

Mesmo refletindo sobre a liberdade na sua estrutura mais liberal como direitos individuais nota-se a armadilha constitucional ao considerar o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, com a mesma hediondez do terrorismo e da tortura. Por que denominamos de democracia um período que juntou na mesma legislação terrorismo tortura e venda de maconha por jovens negros de periferia? O inciso 43 do artigo 5º afirma que: “XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”. Usando uma ferramenta central para a burguesia qual seja a sanção castigo a branquitude usa para si a retribuição-sanção prêmio e para os negras e negras a retribuição-sanção castigo. Thula Pires nos chama a lucidez: “Como pudemos chamar de democrático período que (com esta política de drogas) aumentou o encarceramento em 707%, e que em 2006-2016 permitiu aumento de 658% no encarceramento de mulheres. A democracia se sustentou na violência como norma não como algo episódico que pode acontecer excepcionalmente. (PIRES, 2020).

A questão de fundo aqui seria: Quais as condições sócio-históricas e imediatas de produção do discurso permitiram a reinstituição e permanências das formas jurídicas do racismo estrutural na Constituição de 1988 e na sua interpretação e aplicação? Quais os sujeitos estiveram na posição de pesquisador e qual lugar destes temas, ou melhor, da racialização destes temas? Podemos afirmar que o “achado” esteve muito influenciado por uma sociologia do trabalho ou sociologia rural que já criticada por Guerreiro Ramos fez transplante de pensamentos estrangeiro e interditou a racialização.

Thula Pires em recente texto afirma que

[Inicio da citação] Desde a invasão europeia e consolidação do projeto colonial em terras brasileiras, a raça determina a hierarquia a partir da qual se organizam relações intersubjetivas e, principalmente, institucionais. No entanto, apesar de ser um aspecto absolutamente estruturante e reinventado a cada período, são raras as análises que se dedicam a pautar essa categoria em imbricação com outras como gênero, classe e sexualidade na leitura de processos políticos relevantes da vida nacional. (PIRES, 2018, p. 1056, grifo nosso). [Final da citação]

Mesmo ao tratar daquele que foi o período de maior violência recente, as pesquisas e investigações jurídicas ao não racializar se perdem nos “achados”, como denuncia Thula Pires neste texto “Estruturas Intocadas: Racismo e Ditadura no Rio de Janeiro”:

[Inicio da citação] O objetivo desse trabalho é oferecer a partir de algumas formas de resistência negra contra a Ditadura, organizadas nas décadas de 1960, 1970 e 1980, exemplos de processos de violência e enfrentamento que são costumeiramente silenciados nos trabalhos relacionados ao período, mas que podem informar muito sobre o que se consolidou como violência de Estado naquele momento, em períodos anteriores e naqueles que se sucederam. O primeiro aspecto que precisa ser destacado tem relação com as negativas em racializa as experiências das Comissões da Verdade que se instituíram no Brasil. No âmbito da Comissão Nacional da Verdade, a questão racial não é apresentada de maneira transversal, tal como se evidenciou nas violências perpetradas, muito menos como tratamento apartado. Em algumas experiências estaduais foi possível, ainda que tardiamente e não sem disputa, oferecer algumas referências que marcassem a relação entre racismo e ditadura empresarial-militar, como no Rio de Janeiro e São Paulo. Em todos os casos, o silenciamento ou abertura lateralizada enfrentaram o desafio de responder a perguntas como: “o

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que houve de específico na violência perpetrada contra negros no período da ditadura militar?”, “a violência sofrida por negros no período não foram as mesmas a que estavam secularmente submetidos?”, “Como caracterizar uma violência da ditadura estritamente pautada no racismo”? Tais perguntas só fazem sentido diante das seguintes premissas: 1) uma visão simplista sobre o racismo, entendido puramente na sua dimensão intersubjetiva e dolosa; 2) a ideia de que só é possível entender o racismo a partir de seus efeitos sobre corpos negros; 3) na incapacidade de atribuir humanidade a corpos que habitam e representam a zona o não ser (PIRES, 2018, p. 1056). [Final da citação]

Fruto da luta do movimento negro e dos intelectuais negros no embate constante com o Estado e com a branquitude, inclusive crítica, a Universidade no Brasil vive novos tempos, novos espaços e novos estudantes. Hoje tem no seu corpo discente, inclusive pela implantação de cotas e de cursos noturnos, o maior contingente jovens negros e negras, indígenas, quilombolas e estudantes moradores das periferias urbanas, seguindo uma tendência geral de democratização na composição do Ensino Superior em todo país como mostram recentes estudos da ANDIFES. Mas podemos afirmar que a Universidade é mais negra, indígena, feminina e popular? Estes públicos tiveram acesso à Universidade na graduação em sua maioria e pós-graduação (em minoria), muitos acessando bolsas de pesquisa e extensão, em tempo recente e curto. Veja o exemplo da Universidade Federal da Bahia que fez 70 anos em 2016. O relatório “UFBA em números”: “Em 70 anos, (a UFBA) graduou perto de 105 mil alunos e titulou cerca de 3 mil doutores e 12 mil mestres, sendo a mais importante Instituição de Ensino Superior de nosso Estado”. Do ponto de vista quantitativo e qualitativo garantiu-se como espaço branco e elitista no fazer e pensar acadêmicos. Ainda no seu corpo docente a UFBA que está numa cidade de 86% da população negra tem 2% de docentes negros e negras e, até o ano de 2019 não havia implantado a lei de cotas para docentes (lei 12.990/2014), que foi aprovada em 2014, havendo forte resistência das instâncias deliberativas. [Nota 3]

Podemos perguntar “Como, no ambiente universitário, as cotas sociais e raciais podem significar - para além da reparação e reconhecimento das injustiças históricas – o aperfeiçoamento e a mudança no pensar e fazer da própria Universidade?”. “Quais os sentidos epistêmicos da – mesmo que tímida - democratização do ensino superior?” Considerando que a Universidade, apesar de um espaço de articulação de diversos saberes costuma ser reconhecida pela sua excelência acadêmica pela produção científica, é preciso situar o debate crítico ao paradigma científico e ao estatuto epistemológico adotado pelas ciências sociais modernas como o positivismo científico, pretensão de neutralidade e universalidade; etnocentrismo/eurocentrismo; racismo e androcentrismo e as matrizes teoréticas coloniais. [Nota 4]

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        É urgente conceituar e denunciar as consequências do epistemicídio e valorizar as formulações e reflexões teóricas produzidas nas fronteiras epistemológicas que reconhecem a criatividade metodológica. É urgente neste cenário pensar nas fronteiras epistemológicas, quando devemos avançar para além delas, rompê-las ou torná-las mais fluídas. No debate sobre a validade do conhecimento e as relações entre verdade e poder devemos pautar discussões como a construção da fundamentação epistemológica das ciências e o fenômeno histórico moderno monocultural e sua pretensão de racionalidade - neutralidade metodológica universal escondendo as relações de poder eurocêntricos e epistemicidas. Propomos explorar os debates sobre as fronteiras do conhecimento, a necropolítica, o multiculturalismo e a análise do discurso. Ao enfrentar os desafios epistemológicos a partir da percepção do racismo institucional mais evidenciado por esta presença dos sujeitos protagonistas da pesquisa podemos contribuir para diluir as armadilhas da promessa de neutralidade axiológica, da demarcação teórica pelo argumento de autoridade e, principalmente, das repercussões sociais, políticas e subjetivas do epistemicídio.

Muitos teóricos críticos no direito e na teoria social não se debruçaram sobre as “opressões de grupos” ou trataram no enquadramento de “direito de minorias” ou como uma “variável” ao se depararem com debate do racismo estrutural e do patriarcado. Podemos observar que alguns ao se colocar no debate público diante das categorias raça e racismo, por ora dizem “não sei” mas vamos estudar (os mais prudentes), outros “não quero saber” (já em vias de abandonar a arena) e outros pior “tenho raiva de quem sabe”. Tomaremos aqui como hipótese estes antagonismos como tradução do “pacto narcisístico da branquitude”. Este impede composição de uma demanda urgente que é recolocar as ideologias no centro do debate e reconhecer o novo cenário de disputa para os juristas do marxismo não-dogmático como fez Roberto Lyra Filho com pés na sua época. Por certo que este processo de transformação não poderia ocorrer sem tensões, rupturas e mesmo ameaças de retrocessos. Em recente texto Djamila Ribeiro aponta que

[Inicio da citação] Nos anos 1990, em sua tese de doutorado defendida na USP, Maria Aparecida Bento, mais conhecida como Cida Bento Cunhou a expressão “pacto narcísico da branquitude” - um acordo silencioso entre pessoas brancas que se contratam, se premiam, se aplaudem, se protegem. Narciso era um jovem caçador e se achava tão belo que só conseguiu se apaixonar pela própria imagem. A sacada de Cida Bento em trazer Narciso para pensar a branquitude nos oferece um horizonte de possibilidades. (BENTO apud RIBEIRO, 2019). [Final da citação]

O desafio é ideológico e o racismo é estrutural, de modo de não se trata de comportamentos individuais. O que e quanto de liberdade “merecem” negros, quilombolas, indígenas, na luta de classes? O quanto de liberdade acadêmica para escolher temas métodos e recortes de pesquisa, possuem nesta nova composição? O quanto de liberdade tem estes para dirigir processos políticos? Para partilhar poder acadêmico dos grupos consolidados? Trago a palavra “merecimento” pois uma das ideologias que devemos enfrentar é a meritocracia. Meritocracia conceituada por Dora Lúcia Lima Bertúlio (1997) em importante Seminário ocorrido Brasília ao final da década de 1990 que gerou um livro “Multiculturalismo e Racismo: uma comparação Brasil – Estados Unidos”.

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DUAS HOMENAGENS: Dora Lúcia de Lima Bertúlio e Roberto Lyra Filho

        Para desenvolver esta questão do merecimento gostaria de completar esta comunicação com uma imagem da leitura da Universidade sobre o Brasil mais “profundo” como se costuma dizer. O Brasil “de dentro”, neste caso dos camponeses do Oeste da Bahia. A imagem é de um questionamento de um docente numa Banca de Mestrado, em 2017, sujo tema era “Saneamento Básico como Direito Humano: Um Estudo em localidades rurais do município de São Desidério.” Segundo a autora Amanda dos Santos da Silva o município de São Desidério - Localizado no extremo Oeste da Bahia, com uma população estimada em 32.640 habitantes (IBGE, 2015), tendo o Censo de 2010 contabilizado 27.659 habitantes, com uma população rural de 19.026 habitantes (68,79 % do total), resultando em uma densidade demográfica de 1,82hab./km², é conhecido, nacionalmente, pela produção de grãos e fibras em larga escala, com um PIB per capita que o coloca na posição dos 2% de municípios mais ricos do Brasil, embora o Censo do IBGE (2010) mostrasse que 30% de sua população vive em domicílios com uma renda per capita inferior a R$ 70,00 mensais, ou seja, abaixo da linha de miséria.” Ao defender o saneamento básico como direito humano a autora afirma que “Tais características despertam questionamentos aos discursos do “progresso” aos municípios que implementam projetos de grande porte e que sustentam a macroeconomia, expressando as contradições do sistema econômico”. Neste momento do debate o docente em banca afirma que não haveria como levar os avanços tecnológicos do saneamento básico aos camponeses da região oeste, pois “assim como ao final de século XIX as mulheres não deveriam votar (como queriam as sufragistas nos EUA) pois seguiriam os votos dos seus maridos”. Por uma analogia afirma o docente também aqui neste caso “tudo tem seu tempo”. Esse tempo lento que nos trouxe a situações emergentes violações concretas de direitos é alimentado pela ideologia do merecimento, quem merece o que e quando, e quem define isso. O centro do debate é a meritocracia.

Sendo assim, proponho, aqui, que devemos homenagear, igualmente, os 30 anos do “Direito Achado na Rua” e, também, os 30 anos de defesa da Dissertação “Direito e relações raciais: uma introdução crítica ao racismo” de Dora Lúcia Lima Bertúlio defendida em 1989 na Universidade Federal de Santa Catarina, pois, igualmente, influenciou uma geração.

Dora Lúcia de Lima Bertúlio para além de trabalhar as relações entre direito e justiça, direito e ideologia e direito e conflito social, deu régua e compasso debater mérito e meritocracia. No Seminário, transformado em livro “Multiculturalismo e Racismo” Dora Lúcia escreve sobre “Enfrentamento do racismo em projeto democrático: a possibilidade jurídica” numa aposta no direito. Esta leitura pode ajudar hoje a desvendar silêncios. Segundo Dora Lúcia de Lima Bertúlio

[Inicio da citação] A meritocracia tem sido um valor criado e reproduzido nas diversas formações sociais e, enquanto parte integrante de processos ideológicos de dominação, é elevado à categoria de verdadeiro em si próprio. É como se o talento para o sucesso dependesse única e exclusivamente do indivíduo, sem qualquer interferência do meio. Não estou advogando a ausência ou impropriedade do mérito. O que ocorre é que as categorias que importam em mérito em qualquer das áreas das relações sociais somente se constituem em tal talento por meio de a prioris que são estabelecidos no contexto de valores de dada formação social. Isto posto, mérito não significa outra coisa que a competência especifica para determinada ação ou posição, de acordo com parâmetros preestabelecidos por algo

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ou alguém. Ainda que se objetivem esses parâmetros, eles serão sempre objetivados a partir de uma intenção – que será subjetiva. (BERTÚLIO, 1997). [Final da citação]

A autora explica ainda que

[Inicio da citação] Se o mérito é parte de um sistema de valor, que valores estão previstos na sociedade brasileira em se pensando o dado em se pensando o dado “raça”? Integrando os motivos específicos da formação social brasileira para apreensão e reprodução do valor social dos negros que me referi no segundo tópico, a sociedade brasileira é um resultado de dois dos mais poderosos processos de exploração e genocídio que a história ocidental moderna experimentou: colonização e escravidão. Esses processos tiveram base do seu sucesso na expropriação cultural e material dos povos antigos e, consequentemente necessitou de um arcabouço de valores consequentemente renovável para cumprir seus objetivos, mais como uma linha comum que é a inferioridade dos indivíduos e sociedades pilhadas. Essa característica deve ser entendida como um elemento diferenciador dos povos negros, índios e brancos, para se pensa no valor e introjeções de valores que montam personalidades e comportamentos, através dos séculos, e que constituem uma das categorias do mérito. Nesse sentido, a matriz colonial e escravagista indicará, para o grupo dominante, os limites do que lhe interessa quanto talento par o sucesso, ou seja, que meritocracia é. (BERTÚLIO, 1997). [Final da citação]

        Thula Pires e Ana Flauzina ao comentar a publicação da dissertação em livro revelam que

[Inicio da citação] A publicação de sua dissertação trinta anos depois de sua defesa indica, de um lado, que o racismo epistêmico e o colonialismo jurídico nos espoliou por três décadas da obra que introduziu a discussão racial no estudo e na prática do Direito. De outro lado, revela a potência e sofisticação crítico-téorica de um pensamento negro ancestralmente forjado e contemporaneamente atento aos conflitos tanto estruturais quanto urgentes da sociedade brasileira. Dando volta em sentido anti-horário na “árvore do esquecimento”, Dora nos confronta historiográfica e normativamente com o Direito enquanto “agente-duplo”, capaz de enunciar normas antirracistas disputadas pelos movimentos negros, ao mesmo tempo em que perpetua e reproduz diferenças raciais hierarquizadoras de nossa humanidade e cidadania. (PIRES; FLAUZINA, 2019). [Final da citação]

        O desafio nosso de cada dia é dar a “volta em sentido anti-horário na “árvore do esquecimento” superando qualquer análise sincrônica do direito e sociologia, e buscando na historiografia da escravidão e pós-abolição as amarras ideológicas da formação do pensamento jurídico brasileiro.

Neste sentido, podemos dizer que José Geraldo dialoga com o pensamento de Roberto Lyra Filho em sínteses criativas. Desta forma, o produto autêntico do direito que não se confunde com a lei, passa a ser, quando se traduzir em “transgressões concretas” produto sempre de uma “negociação” e de “um juízo político” de sujeitos coletivos de direito, declarado e reconhecido. Por que os movimentos sociais em geral e seus estudiosos puseram o racismo - que define as questões infraestruturais, do trabalho e terra - como questões do movimento negro?

A rua para o Lyra é espaço da legítima organização social da liberdade. Quem pode se organizar na rua, quem aparece ou tem sido representado na esfera pública? Penso que do lugar da nossa branquitude [Nota 5] –

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como estrutura imperceptível e visível de privilégios inclusive epistêmicos e metodológicos - não compreendemos a diferença a “zona do ser” para “zona do não ser” referência central da Thula Pires para definir o direito inspirada no Franz Fanon. Em que medida há espaço na esfera acadêmica para revisitar uma história do que Cida Bento, em 1990 cunhou a expressão “pacto narcísico da branquitude” (BENTO, 2001). Os caminhos didáticos e pedagógicos da autocrítica passam pelo reconhecimento de epistemicídios na prática acadêmica e da assessoria jurídica popular. Pode-se ver o epistemicídio ao ler a dialética do senhor e do escravo em Hegel sem perceber ali o Haiti como nos indica Susan Burkmoss em Hegel e o Haiti (2011).

Há ainda quem diga vendo como um problema, uma distorção perigosa de lente teórica (não seria medo branco, cristão de perder privilégios?): vocês estão racializando o debate! Vivemos um momento interessante pois parece que as condições sócias e teóricas para (romper silêncios e silenciamentos) fazer esta crítica radical da não-racialização da “rua”, da esfera pública estão colocadas.

Nós da teoria crítica do direito fazemos parte do problema quando nos 30 anos pouco reconhecemos (digo nos volumes) o caráter estrutural e constitutivo da questão racial ou do dispositivo de racialidade. Se fazemos parte do problema podemos fazer da solução. E como nos ensina o professor José Geraldo o otimismo não é uma celebração mas uma orientação para uma ação transformadora.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em recente obra denominada “Racismo Estrutural” Silvio Almeida aponta que “Em países como o Brasil, não se poderia pensar em desenvolvimento sem um projeto nacional que atacasse o racismo como fundamento da desigualdade” (2019, p. 195) Remete a obra pouco difundida na Universidade de Alberto Guerreiro Ramos para indicar que, na década de 1950, este autor “chamava a atenção para o fato de que, sem um compromisso político com o desmantelamento do racismo, inclusive com a promoção de uma inteligência negra compromissada com a transformação social e que não fizesse do negro mero objeto de estudo -, a construção de uma nação seria impossível”, e nos parece que assim tem sido. (RAMOS apud ALMEIDA, p. 196).

O próprio Silvio Almeida explica o peso que “No Brasil, particularmente, é curioso notar como até mesmo os desenvolvimentistas ´progressistas` silenciam sobre a questão racial e, mais do que isso como incorporaram o discurso da democracia racial e da “mestiçagem” de forma acrítica”. Para alguns deles, portanto, “falar de raça e racismo levaria à desintegração social e à criação de conflitos inexistentes” (ALMEIDA, 2019, p. 196).

A principal consequência em não inserir na consciência jurídica critica o racismo como estrutural – e portanto fundamental para compreender a dialética social do direito - foi não constituir ou

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reconstituir direitos para enfrentar as singularidades e especificidades da população negra relativas ao acesso à terra urbana e rural (pela influência da sociologia urbana e rural) e ao trabalho (pela influência da sociologia do trabalho), como se fossem demandas setoriais, de uma razão culturalista ou mesmo de uma demanda identitária. Mesmo os direitos sociais conquistados não foram inscritos na consciência jurídica crítica em geral, na sua materialidade, como direitos reparatórios da escravidão e pós-abolição, fragilizando os sentidos das lutas pela sua manutenção e pouco dialogando como os sujeitos coletivos de direito, que jamais acessaram mesmo os mais básicos dos direitos sociais.

Como exposto acima a grelha teórica-metodológica do “achado” com uma forte influência da sociologia e da filosofia de viés crítico não racializa o debate e assim não cria as condições para no “devir histórico” criticar a Constituição por não inserir o reconhecimento da escravidão e portanto garantir direitos reparatório como justiça e verdade histórica não só da escravidão mas do pós-abolição [Nota 6] .

Esta é também a marca da história mais geral da teoria crítica: o silêncio sobre a questão racial. Reconhecer isso nos põe desafios estruturantes. Reconhecemos o forte viés de originalidade e pontos de fuga metodológico presentes na obra do Roberto Lyra ao tomar como uma chave para entrar no debate a “opressão de grupos” e debater ideologia jurídicas. Para este autor “A ideologia, como crença falsa, leva-nos, portanto, à abordagem da falsa consciência. E esta última se exprime com tanto mais vigor quanto mais frágeis listo é, falsos) são os seus presumidos fundamentos. Estes passam a guiar, então, as nossas atitudes e raciocínios como “evidências” desvairadas.” (LYRA FILHO, 1982, p. 19).

Podemos apontar a necessidade de recolocar o entendimento sobre privilégios e arbítrios de modo mais estrutural. Os privilégios não são apenas dos racistas, sendo estes apenas as lideranças políticas ou “intelectuais orgânicos” de uma estrutura que, querendo ou não, “privilegia” todos os brancos (independentes destes serem racistas ou antirracistas), pois não depende da vontade individual, preconceito individual ou do sentimento de supremacia branca. Neste sentido o conceito de branquitude [Nota 7] avança na consciência jurídica da luta pela justiça e verdade histórica que ainda não alcança a centralidade teórica necessária aos desafios de uma teoria crítica no Brasil.

[Inicio da citação] É a síntese jurídica: Seus critérios, porém, não são cristalizações ideológicas de qualquer “essência” metafísica, mas o vetor histórico-social, resultante do estado do processo, indicando o que se pode ver, a cada instante, como direção do progresso da humanidade na sua caminhada

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histórica. Esta resultante final (final, não no sentido de eterna, mas de síntese abrangedora do aspecto jurídico naquele processo histórico-social, em sua totalidade e transformações) se reinsere, imediatamente, no processo mesmo, uma vez que a história não pára. A síntese não está por cima ou por baixo, num esquema prévio ou posterior, mas DENTRO DO PROCESSO, AQUI E AGORA. (LYRA FILHO, 1982, p. 90). [Final da citação]

        Este aqui e agora nos remete a insuficiência no Brasil, contemporâneo, em debater justiça social, pois só há justiça como justiça histórica e como verdade histórica, e o direito sem história é estrutura da ordem. Como mesmo as teorias críticas no direito soterraram o debate reparatório (constitucional) da escravidão, do pós-escravidão e das teorias racialistas do século XX como determinantes no ensino jurídico por um século? Como a teoria crítica do direito constitucional soterrou a revolução do Haiti e homenageia direitos humanos como horizonte sem apontar que esta “conquista” jamais chegou à população negra no Brasil?

Podemos concluir que há muito que fazer para romper com subjetividades individuais e coletivas para que se afastem de características e práticas jurídicas de um quadro marcado pela branquitude, eurocentrismo e que podem “pactuar” processos epistemicidas não sem tensões, rupturas e resistências. Esta é o desafio de qualquer grupo ou articulação de intelectuais no Brasil contemporâneo.

Por fim afetivamente gostaria de dizer que o tema mais central do direito achado na rua visto como uma teoria de suporte à assessoria jurídica popular é a legítima organização social da liberdade. Aqui vim pensar junto que não há como tratar da organização da liberdade sem tratar de escravidão e compreender que o racismo é o maior impeditivo da liberdade. Pensando como Nina Simone - “Liberdade é não ter medo”. Sendo assim, trago estas contribuições neste Seminário para agradecer ao Direito Achado na Rua, ao professor José Geraldo, por me ajudar a ser livre, sendo que o sentido de liberdade é pertencimento à uma comunidade neste caso acadêmica e política que me ajuda a enfrentar questões neocoloniais como: você já saiu (para estudar fora do Brasil?)? Pergunta esta que respondo com outra questão: você já entrou (para estudar dentro o Brasil?).

REFERÊNCIAS

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Notas de Rodapé

* - Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (2017). Professora da Universidade Federal da Bahia e Coordenadora do Núcleo de Pesquisa e Extensão da Faculdade de Direito NPE/FDUFBA. Foi Diretora da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais (2005-2009).

1 - Marcia Lima em recente artigo afirma que: “Em 1978, Carlos Hasenbalg defendeu na Universidade de Berkeley, sob a orientação de Robert Blauner, a sua tese de doutorado intitulada Race Relations In Post-Abolition Brazil: The Smooth Preservation of Racial Inequalities. Em 1979, a tese foi publicada como livro com o título Discriminação e desigualdades raciais no Brasil, dando início a uma nova linha de interpretação sobre o lugar da raça na compreensão da desigualdade.” A pergunta de Carlos Hasenbalg é: “Quem se beneficia do racismo? Esta questão por sua vez, leva diretamente às relações entre raça e racismo com a estrutura de classes, a estratificação e a mobilidade social. A proposição mais geral é que a de que raça opera como um critério com uma eficácia própria no preenchimento, por não brancos, de lugares na estrutura de classes e no sistema de estratificação social.” (HASENBALG apud LIMA, 2020).

2 - Cf. em SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Direito como liberdade: o direito achado na rua. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2011.

3 - Referencio aqui a luta do Coletivo Luiza Bairros. Você conhece o Coletivo Luiza Bairros? Não? São professores, técnicos, servidores e estudantes negros e negras da comunidade UFBA, que integram em um grupo de combate ao racismo institucional na UFBA, e pauta principalmente, a implementação das cotas nos mestrados e doutorados de todos os cursos da universidade. Eles exigem também o cumprimento efetivo de leis federais, como a das cotas nos concursos para professor. Tudo isso para mudar as estruturas da pirâmide étnico-racial. Mas que pirâmide é essa? Cf. https://www.geledes.org.br/coletivo-luiza-bairros-conheca-grupoqueatuanocombateaoracismoinstitucionalnaufba/?gclid=CjwKCAjwsMzzBRACEiwAx4lLG1IO9JA5ZDYj6OlJhXnyqCYeBV CvcqHWAkCBU1zfBbFYwXtDAPHLBBoC57UQAvD_BwE.

4 - Referencio aqui o PDRR - Programa Direito e Relações Raciais que junto com tantos outros pela luta conseguiu implantar as cotas para docentes no ano de 2019. Cf. em http://www.pdrr.ufba.br/.

 5 - BENTO, Maria Aparecida Silva. Psicologia Social do Racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil, Rio de Janeiro: Vozes, 2001, nos ensina que “Conhecer o branco através da maneira como silencia ou se manifesta sobre negros é uma das inovadoras possibilidades que esta obra nos oferece. A ênfase sobre um problema negro, habitual na literatura clássica sobre relações raciais, convive com um suspeito silêncio sobre o lugar do branco, que parece ter estado ausente da história de 500 anos de Brasil. Este processo é revelador do peso da branquitude na manutenção e reprodução das desigualdades raciais, sistematicamente tratadas como um problema de negro. É preciso compreender o discurso que o silêncio sobre o branco oculta. Compreender a dimensão subjetiva da branquitude é focalizar o medo que sustenta os estereótipos de sexualidade e de fertilidade projetados sobre negros, é entender os pactos narcísicos entre os brancos e a luta silenciosa pela manutenção dos privilégios raciais. É compreender por que a indignação frente à opressão de classe e de gênero não incorpora naturalmente a indignação diante da opressão racial. É entender o significado da expressão ´indignação narcísica´. Por outro lado, é também compreender o óbvio: as desigualdades raciais são gestadas num contexto relacional onde negros e brancos estão necessariamente colocados´.

6 - Cf. em AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. A autora nos chama a refletir: “À primeira vista a abolição da escravidão no Brasil foi uma empresa política relativamente curta e pacífica, dirigida por elites humanitárias e progressistas. Ansiosas por fundar um novo tempo, pautado pela ordem capitalista e pelo progresso, estas elites liberais teriam se posicionado firmemente pelo trabalho livre e pela emancipação dos escravos. Entretanto não lhes teria sido possível incorporar o negro ao mercado de trabalho. Por culpa de sua inconstância, de sua incapacidade para as relações de trabalho contratuais, enfim, devido à pesada herança da escravidão carregada por ele, não restou outro recurso a não ser incentivar a vinda de milhares de imigrantes europeus em substituição aos ex-escravos. Mas se o leitor não se contentar com estas imagens produzidas conjuntamente por abolicionistas e imigrantistas e que ainda hoje perambulam em nosso imaginário, este livro lhe dará o ensejo de acompanhar um dos mais longos e acesos debates já travados em nosso país”.

7 - Cf. em MULLER, Tânia M.P.; CARDOSO, Lourenço. Branquitude: estudos sobre a identidade branca no Brasil. Curitiba: Aprris, 2017. Segundo Kabenguele Munanga no Prefácio desta obra “Os estudos sobre as relações raciais muito falaram do negro e dos problemas que lhe foram criados no universo racial brasileiro, mas deixaram de falar de brancos numa sociedade em que a Branquitude poderia também fazer parte do processo de transformação social, partindo da hipótese de que os brancos conscientes dos privilégios que sua cor lhes traz na sociedade poderiam questioná-los e participar do debate sobre a divisão equitativa do produto social nacional entre brancos e negros.”