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Adaptado por: Beatriz Meneses

Adaptado em: Setembro de 2023

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DURKHEIM, Émile. Origem das crenças. In: As Formas Elementares da Vida Religiosa: o sistema totêmico na Austrália. São Paulo: Paulinas, 1989. p. 166-188. Cap. V. ISBN:85-05-00945-2

CAPÍTULO V

ORIGENS DESSAS CRENÇAS

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sangue, uma vez que não são necessariamente consangüíneos e com freqüência estão dispersos em pontos diferentes do território tribal. Sua unidade, portanto, decorre unicamente de terem um mesmo nome e um mesmo emblema, de acreditarem manter as mesmas relações com as mesmas categorias de coisas, de praticarem os mesmos ritos, ou seja, de comungarem no mesmo culto totêmico. Assim, o totemismo e o clã, pelo menos enquanto este último não se confunde com o grupo local, implicam-se mutuamente. Ora, a organização à base de clãs é a mais simples que conhecemos. Ela existe, com todos os seus elementos essenciais, tão logo a sociedade compreende dois clãs primários; por conseguinte, não pode haver outra mais rudimentar enquanto não forem descobertas sociedades reduzidas a um único clã, e acreditamos que até hoje não se tenham encontrado vestígios disso. Uma religião tão estreitamente solidária do sistema social, que ultrapassa todas as outras em simplicidade, pode ser considerada como a mais elementar que nos é dada a conhecer. Se chegarmos, pois, a encontrar as origens das crenças que acabam de ser analisadas, teremos chances de descobrir também as causas que fizeram brotar o sentimento religioso na humanidade.

Mas antes de nós mesmos tratarmos o problema, convem examinar as soluções mais autorizadas que lhe foram propostas.

I

Encontramos em primeiro lugar um grupo de estudiosos que acreditaram poder explicar o totemismo derivando-o diretamente de uma religião anterior.

Para Tylor [Nota1] e Wilken [Nota 2], o totemismo seria  uma forma particular do culto dos antepassados; a doutrina da transmigração das almas, certamente muito difundida, é que teria servido de transição entre esses dois sistemas religiosos.

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Um grande número de povos crêem que a alma, após a morte, não permanece eternamente desencamada, mas vem animar novamente algum corpo vivo; por outro lado, “como a psicologia das raças inferiores não estabelece nenhuma linha de demarcação bem definida entre a alma dos homens e a dos animais, ela admite” [Nota 3].Tylor cita um certo número de exemplos [Nota 4 ]. Nessas condições, o respeito religioso que o antepassado inspira transporta-se naturalmente para o animal ou a planta com que doravante se confunde. O animal, que serve assim de receptáculo a um ser venerado, torna-se, para todos os descendentes do antepassado, isto é, para o clã que dele se originou, uma coisa sagrada, o objeto de um culto, em uma palavra, um totem.

Fatos observados por Wilken nas sociedades do arquipélago malaio tenderiam a provar que é assim, com efeito, que as crenças totêmicas se originaram. Em Java, em Sumatra, os crocodilos são particularmente honrados; são vistos como benevolentes protetores que não se deve matar; fazem-lhes oferendas. Ora, o culto prestado a esses animais advém de que encarnariam almas dos antepassados. Os malaios das Filipinas consideram o crocodilo como seu avô; o tigre é tratado da mesma maneira e pelas mesmas razões. Crenças análogas foram observadas entre os Bantos [Nota5]. Na Melanésia, acontece às vezes que um homem influente, no momento de morrer, anuncie sua vontade de reencarnar-se em determinado animal ou planta; explica-se, assim, que o objeto que ele escolheu como morada póstuma se torne em seguida sagrado para toda a sua família [Nota 6]. Longe de constituir um fato primitivo, o totemismo seria apenas o produto de uma religião mais compleza que o teria precedido [Nota 7].

Mas as sociedades das quais esses fatos são tomados, já alcançaram uma cultura bastante elevada; em todo caso, ultrapassam a fase do puto totemismo. Há entre elas famílias, e não clãs totêmicos [Nota 8]. Inclusive a mais parte dos

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animais, aos quais se prestam homenagens religiosas, é venerada não por grupos familiares determinados, mas por tribos inteiras. Portanto, se essas crenças e essas práticas podem ter ainda relação com antigos cultos totêmicos, agora não representam mais que formas alteradas desses cultos [Nota 9] e, conseqüentemente, não são muito próprias para nos revelar suas origens. Não é considerando uma instituição no momento em que está em plena decadência que se chegará a compreender como ela se formou. Se quisermos saber de que maneira o totemismo se originou, não é Java, nem Sumatra, nem a Melanésia que devemos observar: é a Austrália. Ora, aqui não existe culto dos mortos [Nota 10] nem doutrina da transmigração. Claro que se acredita que os heróis míticos, fundadores do clã, se reencarnam periodicamente, mas exclusivamente em corpos humanos; cada nascimento, como veremos, é o produto de uma dessas reencarnações. Se os animais da espécie totêmica são, portanto, objeto de ritos, não é porque almas ancestrais residiriam neles. É verdade que esses primeiros antepassados costumam ser representados sob forma animal, e essa representação, muito freqüente, é um fato importante que precisaremos levar em conta; mas não é a crença na metempsicose que pode tê-lo originado, já que ela é desconhecida das sociedades australianas.

Aliás, longe de poder explicar o totemismo, essa crença supõe um dos princípios fundamentais sobre os quais ele repousa, isto é, toma como dado exatamente aquilo que é preciso explicar. Com efeito, da mesma forma que o totemismo, ela implica que o homem é concebido como intimamente ligado ao animal, pois, se os dois reinos fossem claramente distinguidos nos espíritos, não se acreditaria que a alma humana pudesse passar de um a outro com essa facilidade. É preciso mesmo que o corpo do animal seja considerado sua verdadeira pátria, pois se supõe que ela volta a ele assim que retoma sua liberdade. Ora, se a doutrina da transmigração postula essa singular afinidade, não a explica de maneira nehuma. A única razão

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dada por Tylor é que o homem, às vezes, lembra certos traços da anatomia e da psicologia do animal.

 

[Inicio de citação] O selvagem, diz ele, observa com admiração simpática os traços semi-humanos, as ações e o caráter dos animais. Não é o animal a encarnação mesma, se podemos exprimir assim, de qualidades familiares ao homem? E quando aplicamos, como epíteto, a certos homens o nome de leão, de urso, de raposa, de mocho, de papagaio, de víboia, de verme, não resumimos, numa palavra, alguns traços característicos de uma vida humana? [ Nota 11] [Final da citação] 

Mas se ocorrem, de fato, essas semelhanças, elas são incertas e excepcionais; o homem assemelha-se antes de tudo a seus pais, a seus companheiros, e não a plantas ou a animais. Analogias tão raras e duvidosas não poderiam prevalecer sobre evidências tão partilhadas, nem induzir o homem a pensar a si próprio e a seus antepassados sob formas que contradissessem todos os dados da experiência diária. Portanto, a questão permanece de ppe e, enquanto não for resolvida não se pode dizer que o tetemismo esteja explicado [Nota 12].

Enfim, toda essa teorida repousa sobre um equívoco fundamental. Tanto para Tylor como para Wundt, o totemismo seria apenas um caso particular do culto dos animais [Nota 13}. Sabemos, ao contrário, que é preciso ver nele algo bem diferente de uma espécie de zoolatria [Nota 14]. O animal de maneira nenhuma é adorado no totemismo; o homem é quase seu igual e às vezes até dispõe dele como coisa própria, longe de lhe estar subordinado como um fiel a seu deus. Se realmente os animais da espécie totêmica fossem considerados encamações dos antepassados, não se deixaria os membros de clãs estrangeiros consumir livremente sua carne. Em realidade, não é ao animal como tal que se dirige o culto, mas ao emblema, à imagem do totem. Ora, entre essa religião do emblema e o culto dos antepassados não existe nenhuma relação.

Enquanto Tylor reduz o totemismo ao culto dos antepassados, Jevons o vincula ao culto da natureza [Nota 15], e eis de que maneira o deriva dele.

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Uma vez que, sob o impacto da surpresa que lhe causavam as irregularidades constatadas no curso dos fenômenos, povoou o mundo de seres sobrenaturais [Nota 16], o homem sentiu a necessidade de conciliar-se com as forças temíveis de que ele próprio se havia cercado. Para não ser esmagado por elas, compreendeu que o melhor meio era aliar-se a algumas dessas forças e contar assim com seu apoio. Ora, nessa fase da história, não se conhece outra forma de aliança e de associaçâo a não ser a que resulta do parentesco. Todos os membros de um mesmo clã se ajudam mutuamente porque são parentes ou, o que dá no mesmo, porque se vêem como tais; ao contrário, clãs diferentes são tratados como inimigos porque são de sangue diferente. A unica maneira de obter o apoio dos seres sobrenaturais era, portanto, adotá-los como parentes e fazer-se adotar por eles na mesma qualidade: os procedimentos bem conhecidos do blood-covenant [pacto de sanguel] permitiam atingir facilmente esse resultado. Mas, como nesse momento o indivíduo não tinha ainda personalidade própria, como não via nele senão uma parte qualquer de seu grupo, isto é, de seu clã, foi o clã em conjunto, e não o indivíduo, que contraiu coletivamente esse parentesco. Pela mesma razão, contraiu-o, não com um objeto em particular, mas com o grupo natural, isto é, com a espécie da qual esse objeto fazia parte; pois o homem pensa o mundo como pensa a si mesmo, e, assim como não se concebe separado de seu clã, não poderia conceber uma coisa separada da espécie à qual pertence. Ora, uma espécie de coisa unida a um clã por laços de parentesco, diz Jevons, é um totem.

É certo, de fato, que o totemismo implica uma estreita associaçño entre um clã e uma categoria determinada de objetos. Mas que essa associaçäo, como pretende Jevons, tenha sido assumida deliberadamente, com plena consciência do propósito visado, é o que parece pouco de acordo com o que nos ensina a história. As religiões são coisas complexas, correspondem a múltiplicas e obscuras

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necessidades para que possam ter sua origem num ato claramente refletido da vontade. Aliás, ao mesmo tempo que peca por excesso de simplismo, essa hipótese está carregada de inverossimilhanças. Diz-se que o homem teria buscado o apoio dos seres sobrenaturais dos quais as coisas dependem. Mas, então, deveria ter se dirigido de preferência aos mais poderosos dentre eles, àqueles cuja proteção prometia ser mais eficaz [Nota 17]. Ora, muito pelo contrário, os seres com os quais ele estabeleceu esse parentesco místico figuram na maioria das vezes entre os mais humildes. Por outro lado, se realmente se tratasse apenas de fazer aliados e defensores, o homem teria buscado contar com o maior número possível deles, pois assim estaria melhor defendido. No entanto, em realidade, cada clã se contenta sistematicamente com um único totem, isto é, com um único protetor, deixando os outros clãs usufruir do deles em completa liberdade: cada clã se encerra rigorosamente no domínio religioso que lhe é próprio, sem jamais querer usurpar o dos vizinhos. Essa reserve e essa moderação são ininteligíveis na hipótese que examinamos.

II

Todas essas teorias, aliás, cometem o erro de omitir uma questão que domina todo o assunto. Vimos que existern duas espécies de totemismo: o do indivíduo e o do clã. Entre os dois, há um parentesco demasiado evidente para que não mantenham qualquer relação. Cabe, portanto, perguntar se um não derivou do outro e, em caso de resposta afirmativa, qual o mais primitivo. Conforme a solução adotada, o problema das origens do totemismo se colocará em termos diferentes. Essa questão se impõe sobretudo por apresentar um interesse muito geral. O totemismo individual é o aspecto individual do culto totêmico. Logo, se for ele o fato primitivo, cumpre dizer que a religião nasceu da consciência do indivíduo, que ela responde

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antes de tudo a aspirações individuais e que só secundariamente adquiriu uma forma coletiva.

O espírito simplista, que ainda inspira com freqüência muitos etnógrafos e sociólogos, levaria muitos estudiosos a explicar, tanto aqui como alhures, o complexo pelo simples, o totem do grupo pelo do indivíduo. Tal é, com efeito, a teoria defendida por Frazer, em seu Golden Bougb [ Nota 18], por Hill Tout [Nota 19], pela srta. Fletcher [Nota 20], por Boas [Nota 21] e por Swanton [Nota 22]. Ela tem a vantagem, aliás, de estar de acordo com a concepção que correntemente se faz da religião, isto é, ver nela algo de muito íntimo e pessoal. Desse ponto de vista, o totem do clã só pode ser um totem individual que teria se generalizado. Um homem marcante, após ter experimentado o valor de um totem que livremente escolhera, o teria transmitido a seus descendentes; estes, multiplicando-se com o tempo, teriam acabado por formar essa família extensa que é o clã e, assim, o totem teria se tornado coletivo.

Hill Tout julgou encontrar uma prova em apoio dessa teoria na maneira como o totemismo é entendido por certas sociedades do Noroeste americano, especialmente pelos Salish e os índios do rio Thompson. Entre esse povos, com efeito, verificam-se tanto o totemismo individual como o de clã; mas, ou eles não coexistem numa mesma tribo, ou, quando coexistem, são desigualmente desenvolvidas. Variam na razão inversa um do outro: lá onde o totem do clã tende a ser a regra geral, o totem individual tende a desaparecer, e vice-versa. Não equivale isso a dizer que o primeiro é uma forma mais recente do segundo, que ele exclui ao substituí-lo [Nota 23] ? A mitologia parece confirmar essa interpretação. Nas mesmas sociedades, de fato, o antepassado do clã não é um animal totêmico, o fundador do grupo sendo geralmente representado sob os traços de um ser humano que, em dado momento, teria entrado em relação e em comércio familiar com um animal fabuloso, do qual teria recebido seu emblema totêmico. Esse emblema, com os poderes especiais a ele ligados, teria

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em seguida passado aos descendentes desse herói mítico por direito de herança. Esses povos parecem, pois, reconhecer no totem coletivo um totem individual que teria se perpetuado numa mesma família [Nota 24]. De fato, acontece ainda hoje que um pai transmite seu totem aos filhos. Portanto, ao imaginar que, de maneira geral, o totem coletivo teve essa mesma origem, apenas se afirma do passado um fato que é ainda presentemente observável [Nota 25].

Resta explicar de onde vem o totemismo individual. A resposta a essa questão varia segundo os autores.

Hill Tout vê nele um caso particular do fetichismo. Sentindo-se cercado de espíritos temíveis por todos os lados, o indivíduo teria experimentado o sentimento que, ainda há pouco, Jevons atribuía ao clã: para poder se manter, teria buscado nesse mundo misterioso algum protetor poderoso. É assim que o costume do totem individual teria se estabelecido [Nota 26]. Para Frazer, essa mesma instituição seria antes um subterfúgio, uma artimanha de guerra inventada pelos homens para escapar a certos perigos. Sabe-se que, segundo uma crenca muito difundida num grande número de sociedades inferiores, a alma humana pode, sem inconvenientes, deixar temporariamente o corpo que habita: por mais distante que possa estar, continua a animá-lo por uma espécie de ação a distância. Mas com isso, em certos momentos críticos que ameaçariam particulamente a vida, pode haver interesse em retirar a alma do corpo e depositá-la num lugar ou num objeto, onde ela estaria mais segura. E, de fato, há um certo número de práticas destinadas a exteriorizar a alma a fim de subtraí-la a algum perigo, real ou imaginário. Por exemplo, no momento em que as pessoas vão penetrar numa casa recém-construída, um mágico extrai suas almas e as põe num saco, restituindo-as a seus proprietários somente depois que o limiar for atravessado. É que o momento de entrada numa casa nova é excepcionalmente crítico: corre-se o risco de perturbar e, portanto, ofender, os espíritos que residem no solo, sobretudo debaixo do limiar, e, se não forem tomadas precauções,

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eles poderiam fazer o homem pagar caro sua audácia. Mas, uma vez passado o perigo, uma vez que se pôde prevenir a cólera dos espíritos e ate mesmo contar com seu apoio graças ao cumprimento de certos ritos, as almas podem voltar a seu lugar habitual [Nota 27]. Essa mesma crença teria dado origem ao totem individual. Para se proteger contra malefícios mágicos, os homens teriam julgado prudente ocultar suas almas na multidão anônima de uma espécie animal ou vegetal. Estabelecida essa relação, cada indivíduo sentiu-se intimamente unido ao animal ou à planta em que residiria seu princípio vital. Dois seres tão solidários acabaram inclusive sendo considerados praticamente indistintos: acreditou-se que um participava da natureza do outro.

Essa crença, uma vez admiticla, facilitou e ativou a transformação do totem pessoal em totem hereditário e, portanto, coletivo, pois pareceu muito evidente que esse parentesco de natureza devesse se transmitir hereditariamente do pai aos filhos.

Não nos deteremos a discutir longamente essas duas explicações do totem individual: são engenhosas noções do espírito, mas carecem totalmente de provas positivas. Para poder reduzir o totemismo ao fetichismo, seria preciso ter estabelecido que o segundo é anterior ao primeiro; ora, não apenas nenhum fato é alegado para demonstrar essa hipótese, como também ela é contestada por tudo o que sabemos. O conjunto, mal determinado, de ritos chamados fetichismo, parece efetivamente só se manifestar entre povos que já atingiram um certo grau de civilização.  um tipo de culto desconhecido na Austrália. É verdade que se qualificou o churinga de fetiche [Nota 28]; mas, supondo-se que essa qualificação se justifique, ela não poderia provar a anterioridade que se postula. Muito pelo contrário, o churinga supõe o totemismo, já que é essencialmente um instrumento do culto totêmico e deve exclusivamente às crenças totêmicas as virtudes que lhe são atribuídas. Quanto à teoria de Frazer, ela supõe no primitivo uma espécie de absurdo intrínseco que os fatos conhecidos

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não permitem atribuir-lhe. O primitivo tern uma lógica, por mais estranha que possa às vezes nos parecer; ora, a menos que fosse totalmente desprovido dela, ele não poderia fazer o raciocínio que lhe imputam. Que ele julgasse garantir a sobrevivência de sua alma dissimulando-a num lugar secreto e inacessível, como o teriam feito tantos heróis dos mitos e das fábulas, nada mais natural. Mas como poderia ele julgá-la mais segura no corpo de um animal do que no seu próprio? Claro que, perdida assim na espécie, a alma poderia ter chances de escapar mais facilmente aos sortilégios do mágico, mas, ao mesmo tempo, achava-se totalmente exposta aos ataques dos caçadores. Seria um meio singular de proteção envolvê-la numa forma material que se expunha a riscos a todo instante [Nota 29]. Sobretudo, é inconcebível que povos inteiros se deixassem levar por semelhante aberração [Nota 30]. Enfim, num grande número de casos, a função do totem individual é manifestamente muito distinta da que lhe atribui Frazer: trata-se, antes de tudo, de um meio de conferir a mágicos, a caçadores, a guerreiros, poderes extraordinários [Nota 31]. Quanto à solidariedade do homem e da coisa, com todos os inconvenientes que implica, ela é aceita como uma conseqüência obrigatória do rito, mas não é desejada em si mesma e por si mesma.

Há menos motivos ainda de nos determos nessa controvérsia quando o verdadeiro problema não se encontra aí. O que importa saber antes de tudo é se o totem individual é realmente o fato primitivo do qual o totem coletivo teria derivado, pois, conforme a resposta que dermos a essa questão, deveremos buscar o núcleo da vida religiosa em duas direções opostas.

Ora, contra a hipótese de Hill Tout, da srta. Fletcher, de Boas, de Frazer, há um tal conjunto de fatos decisivos que nos surpreendemos que ela tenha sido aceita de uma maneira tão fácil e tão geral.

Em primeiro lugar, sabemos que o homem muito freqüentemente tern um forte interesse em não apenas respeitar,

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mas em fazer respeitar por seus companheiros os animais da espécie que lhe serve de totem pessoal; trata- se de sua própria vida. Portanto, se o totemismo coletivo fosse apenas a forma generalizada do totemismo individual, ele deveria se basear no mesmo princípio. Os membros de um clã não só deveriam se abster de matar e comer seu animal-totem, como também deveriam fazer o possível para reclamar dos estrangeiros a mesma abstenção. Ora, na verdade, muito longe de impor essa renúncia a toda a tribo, cada clã, através de ritos que decreveremos adiante, cuida para que a planta ou o animal que lhe serve de totem cresça e prospere, a fim de assegurar aos outros clãs uma alimentação abundante. Assim, seria preciso ao menos admitir que, ao tornar-se coletivo, o totemismo individual transformou-se profundamente, e seria preciso explicar essa transformação.

Em segundo lugar, como explicar desse ponto de vista que, exceto onde o totemismo está em decadência, dois clãs de uma mesma tribo tenham sempre totens diferentes? Parece que nada impedia dois ou vários membros de uma mesma tribo, sobretudo quando não havia nenhum parentesco entre eles, de escolher seu totem pessoal na mesma espécie animal e de transmiti-lo em seguida a seus descendentes. Não acontece hoje, entre nós, duas famílias distintas terem o mesmo nome? A maneira, estritamente regulamentada, com que totens e subtotens são distribuídos primeiro entre as duas fratrias, depois entre os diversos clãs de cada fratria, supõe manifestamente um entendimento social, uma organização coletiva. Vale dizer que o totemismo é algo mais do que uma prática individual que teria espontaneamente se generalizado.

Aliás, não se pode derivar o totemismo coletivo do individual, a menos que se desconheçam as diferenças que os separam. O primeiro é designado à criança por ocasião de seu nascimento, é um elemento de seu estado civil. O outro é adquirido ao longo da vida, supõe o cumprimento de um rito determinado e uma mudança de estado.

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Acredita-se diminuir a distância inserindo entre eles, como uma espécie de termo médio, o direito que todo detector de um totem teria de transmiti-lo a quem quisesse. Mas essas transferências, não importa onde as observemos, são atos raros, relativamente excepcionais; não podem ser operadas senäo por mágicos ou personagens investidos de poderes especiais [Nota 32]; em todo caso, só podem ocorrer por meio de cerimônias rituais que efetuam a mudança. Seria preciso explicar, portanto, de que maneira o que era prerrogativa de alguns tomou-se direito de todos; de que maneira o que implicava, antes de mais nada, uma mudança profunda na constituição religiosa e moral do indivíduo pôde tornar-se um elemento dessa constituição; de que maneira, enfim, uma transmissão que, primitivamente, era conseqüência de um rito, foi depois considerada como se produzindo espontaneamente, pela força das coisas e sem a intervençäo de nenhuma vontade humana.

Em apoio de sua interpretação, Hill Tout alega que certos mitos atribuem ao totem de clã uma origem individual: neles se conta que o emblema totêmico foi adquirido por um indivíduo determinado que depois o teria transmitido a seus descendentes. Mas, em primeiro lugar, esses mitos são tomados de tribos indígenas da América do Norte, ou seja, de sociedades que chegaram a um grau bastante elevado de cultura. Como é que uma mitologia tão afastada das origens poderia reconstitute, com alguma segurança, a forma primitiva de uma instituição? Há muitas chances de que causas intercorrentes tenham desfigurado gravemente a lembrança que os homens poderiam ter conservado dela. Além disso, é muito fácil opor, a esses mitos, outros que parecem ser primitivos e cuja significação é completamente diferente. Nestes, o totem é representado como o ser mesmo do qual o clã descendeu. É ele, pois, que constitui a substância do clã; os indivídiios trazem-no consigo desde o nascimento; trazem-no em sua came e em seu sangue, ao invés de o terem recebido de fora [Nota 33]. E tern mais: os próprios mitos sobre os

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quais se apóia Hill Tout contêm um eco dessa antiga concepção. O fundador epônimo do clã possui aí claramente uma figura de homem; mas é um homem que, após ter vivido em meio aos animais de uma espécie determinada, teria acabado por assemelhar-se a eles. É que certamente chegou um momento em que os espíritos eram cultivados demais para continuar a admitir, como no passado, que os homens pudessem nascer de um animal; portanto, eles substituíram o animal ancestral, impossível de ser representado, por um ser humano, mas imaginaram que esse homem havia adquirido, por imitação ou por outros procedimentos, certas características da animalidade. Assim, mesmo essa mitologia tardia traz a marca de uma época mais remota em que o totem do clã de maneira nenhuma era concebido como uma espécie de criaçño individual.

Mas essa hipótese não levanta apenas graves dificuldades lógicas: ela é diretamente contestada pelos fatos que seguem.

Se o totemismo individual fosse o fato inicial, ele deveria ser tanto mais desenvolvido e tanto mais evidente quanto mais primitivas fossem as sociedades; inversamente, deveríamos vê-lo perder terreno e apagar-se entre os povos rnais avançados. Ora, é o contrário que se verifica. As tribos australianas são muito mais atrasadas que as da América do Norte; no entanto, a Austrália é a terra de predileção do totemismo coletivo. Na grande maioria das tribos, ele reina sozinho, ao passo que não há uma delas, em nosso conhecimento, em que o totemismo individual seja o único praticado [Nota 34]. Só encontramos este último, sob uma forma caracterizada, num número ínfimo de tribos [Nota 35], e, mesmo aí, quase sempre em estado rudimentar. Ele consiste, então, em práticas individuais e facultativas, mas que não possuem nenhum caráter de generalidade. Os mágicos são os únicos a conhecer a arte de estabelecer relações misteriosas com espécies animais a que não são naturalmente aparentados. As pessoas comuns não gozam desse privilégio [Nota 36]. Ao contrário, na América, o totem cole

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tivo está em plena decadência; nas sociedades do Noroeste, em particular, ele não possui senão um caráter religioso bastante apagado. Inversamente, entre esses mesmos povos, o totem individual desempenha um papel considerável. Atribui-se a ele uma eficácia muito grande; tornou- se uma verdadeira instituição pública. É que ele é característico de uma civilização mais avançada. Eis aí, certamente, como se explica a inversão que Hill Tout acredita ter observado nos Salish entre essas duas formas de totemismo. Se, onde o totemismo coletivo é plenamente desenvolvido, o outro praticamente inexiste, não é porque o segundo recuou diante do primeiro; ao contrário, é porque as condições necessárias à sua existéncia não se realizaram plenamente.

Mas o que é ainda mais demonstrativo é que o totemismo individual, longe de ter dado origem ao totemismo de clã, supõe este último. É no contexto do totemismo coletivo que ele se originou e se move, como parte integrante dele. Com efeito, mesmo nas sociedades em que é preponderante, os noviços não têm o direito de tomar por totem pessoal um animal qualquer; a cada clã é atribuído um certo número de espécies determinadas, fora das quais não é permitido escolher. Em troca, aquelas que assim lhe pertencem são sua propriedade exclusiva; os membros de um clã estrangeiro não podem usurpá-las [Nota 37]. Essas espécies são concebidas como mantendo relações de estreita dependência com aquela que serve de totem ao clã inteiro. Há inclusive casos em que é possível perceber essas relações: o totem individual representa uma parte ou um aspecto particular do totem coletivo [Nota 38]. Entre os Wotjobaluk, cada membro do clã considera os totens pessoais de seus companheiros como sendo em parte seus [Nota 39]; tudo indica, portanto, que sejam subtotens. Ora, o subtotern supõe o totem, assim como a espécie supõe o gênero. Deste modo, a primeira forma de religião individual que encontramos na história nos aparece, não como o princípio ativo da religião pública, mas, ao contrário, co

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mo um simples aspecto desta última. O culto que o indivíduo organiza para si mesmo e, de certo modo, em seu foro interior, longe de ser o germe do culto coletivo, não é senão este adaptado às necessidades do indivíduo.

III

Num trabalho mais recente [Nota 40] , que lhe foi sugerido pelas obras de Spencer e Gillen, Frazer tentou uma nova explicação do totemismo em substituição à que ele havia inicialmente proposto e que acaba de ser discutida. Ela se baseia no postulado de que o totemismo dos Arunta é o mais primitivo que conhecemos; Frazer chegará a dizer que esse totemismo quase não difere do tipo verdadeira e absolutamente original [Nota 41].

O que ele tem de singular é que os totens, aqui, não estão ligados nem a pessoas, nem a grupos de pessoas determinados, mas a localidades. Cada totem possui, de fato, seu centro num lugar definido. É aí que se supõe residirem as almas dos primeiros antepassados que, na origem dos tempos, constituíam o grupo totêmico. É aí que se encontra o santuário onde são conservados os churinga e onde o culto é celebrado. É também essa distribuição geográfica dos totens que determina a maneira pela qual os clãs se formam. A criança, com efeito, tem por totem não o de seu pai ou de sua mãe, mas aquele que tem seu centro no lugar onde a mãe acredita ter sentido os primeiros sintomas de sua maternidade próxima. Pois o Arunta ignora, diz-se; a relação precisa que une o fato da geração ao ato sexual [Nota 42]; acredita que toda concepção é devida a uma espécie de fecundação mística. Ela implica, segundo ele, que uma alma de antepassado penetrou no corpo de uma mulher e tomou-se aí o princípio de uma vida nova. No momento, portanto, em que a mulher percebe as primeiras contrações da criança, ela imagina que uma das almas que têm sua residência principal no lugar onde se

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encontra acaba de penetrar nela. E, como a criança que nasce a seguir não é outra coisa senão esse antepassado reencarnado, seu totem é necessariamente o mesmo; ou seja, o clã dessa criança é determinado pela localidade onde ela teria sido misticamente concebida.

Ora, é esse totemismo local que representaria a forma original do totemismo; quando muito, se distanciaria dessa forma por um intervalo muito curto. Eis como Frazer explica sua gênese.

No instante preciso em que a mulher se percebe grávida, ela deve pensar que o espírito que a possui veio dos objetos que a cercam, sobretudo de um daqueles que, nesse momento, atraíam sua atenção. Portanto, se estava ocupada na coleta de alguma planta, ou se vigiava um animal, acreditará que a alma desse animal ou dessa planta passou para ela. Entre as coisas a que será particularmente levada a atribuir sua gravidez, encontram-se, em primeiríssimo lugar, os alimentos que acabou de ingerir. Se comeu recentemente carne de ema ou inhame, não duvidará que uma ema ou um inhame se originou e se desenvolve dentro dela. Sendo assim, explica-se que a criança, por sua vez, seja considerada como uma espécie de ema ou de inhame, que veja a si própria como um congênere dos animais ou das plantas da mesma espécie, que lhes demonstre simpatia e consideração, que se proíba de comê-los, etc. [Nota 43] A partir de então, o totemismo existe em seus traços essenciais: a noção que o indígena teria da geração é que o teria originado, por isso Frazer chama o totemismo primitivo de concepcional.

É desse tipo original que todas as outras formas de totemismo teriam derivado. "Se várias mulheres, uma após a outra, perceberem os sinais premonitórios da maternidade num mesmo lugar e nas mesmas circunstâncias, esse lugar será visto como freqüentado por espíritos de uma espécie particular; e, assim, com o tempo, a região será dotada de centros totêmicos e dividdida em distritos totêmicos [Nota 44].” Eis como o totemismo local dos Arunta teria

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nascido. Para que em seguida os totens se separem de sua base territorial, bastará conceber que as almas ancestrais, ao invés de permanecer imutavelmente fixas num lugar determinado, sejam capazes de se mover livremente sobre toda a superfície do território e de seguir, em suas viagens, os homens e as mulheres do mesmo totem que elas. Deste modo, uma mulher poderá ser fecundada por um espírito de seu próprio totem ou do totem de seu marido, ainda que ela resida num distrito totêmico diferente. Conforme se imaginar que são os antepassados do marido ou os da mulher que seguem o jovem casal espreitando a ocasião de reencarnar-se, o totem da criança será o de seu pai ou o de sua mãe. De fato, é exatamente assim que os Gnanji e os Umbaia, de um lado, e os Urabunna, de outro, explicam seus sistemas de filiação.

Mas essa teoria, como a de Tylor, repousa sobre uma petição de princípio. Para poder imaginar que as almas humanas são almas de animais ou de plantas, já era preciso crer que o homem tomasse do mundo animal ou do mundo vegetal o que há de mais essencial nele. Ora, essa crença é precisamente uma das que estão na base do totemismo. Colocá-la como uma evidência é, portanto, apoiar-se naquilo que seria preciso explicar.

Desse ponto de vista, além do mais, o caráter religioso do totem é inteiramente inexplicável; pois a vaga crença num obscuro parentesco do homem e do animal não é suficiente para fundar um culto. Essa confusão de reinos distintos não poderia ter por efeito desdobrar o mundo em profano e sagrado. É verdade que, coerente consigo mesmo, Frazer se recusa a ver no totemismo uma religião, sob pretexto de que nele não se encontram nem seres espirituais, nem preces, nem invocações, nem oferendas, etc. Para ele, seria apenas um sistema mágico, entendendo por isto uma espécie de ciência grosseira e errônea, um primeiro esforço para descobrir as leis das coisas [Nota 45]. Mas sabemos o que essa concepção da religião e da magia tern de inexata. Há religião assim que o sagrado dis

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tingue-se do profano, e vimos que o totemismo é um vas-to sistema de coisas sagradas. Explicá-lo é, portanto mostrar por que essas coisas foram marcadas por tal caráter [Nota 46]. Ora, esse problema não é sequer colocado por Frazer.

Mas o que acaba de arruinar esse sistema é que, hoje, o postulado sobre o qual repousa não é mais sustentável. Toda a argumentação de Frazer supõe, com efeito, que o totemismo local dos Arunta é o mais primitivo que conhecemos e, sobretudo, que é sensivelmente anterior ao totemismo hereditário, seja em linha paterna, seja em linha materna. Ora, com base nos simples fatos que a primeira obra de Spencer e Gillen já punha à nossa disposição, pudemos conjeturar que deve ter havido um momento na história do povo Arunta em que os totens, em vez de estar ligados a localidades, transmitiam-se hereditariamente da mãe aos filhos [Nota 47]. Essa conjetura é definitivamente demonstrada pelos novos fatos descobertos por Strehlow [Nota 48] e que aliás não fazem senão confirmar observações anteriores de Schulze [Nota 49]. Esses dois autores nos mostram que, ainda hoje, cada arunta, além de seu totem local, tern um outro que é independente de toda condição geográfica, mas que lhe pertence por direito de nascimento: é o de sua mãe. Esse segundo totem, assim como o primeiro, é considerado pelos indígenas como uma potência amiga e protetora, que provê o alimento deles, que os adverte dos perigos possíveis, etc. Eles têm o direito de participar de seu culto. Quando os enterram, dispõem o cadáver de maneira a que o rosto fique virado para a região onde se localiza o centro totêmico da mãe. Isso significa que esse centro é também, de certa forma, o do defunto. De fato, dão-lhe o nome de tmara altjira, que quer dizer: campo do totem que me é associado. Portanto é certo que, entre os Arunta, o totemismo hereditário em linha uterina não é posterior ao totemismo local, devendo, ao contrário, tê-lo precedido. Pois o totem materno hoje não possui mais que um papel acessório e complementar, é um totem secundário, o que explica que tenha podido escapar a ob

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servadores tão atentos e avisados como Spencer e Gillen. Mas para que se mantivesse assim em segundo plano, como uma repetição do totem local, é preciso que tenha havido um tempo em que ele é que ocupava o primeiro plano na vida religiosa. Trata-se, em parte, de um totem decaído, mas que lembra uma época em que a organização totêmica dos Arunta era muito diferente da que é hoje. Toda a construção de Frazer acha-se, assim, minada na sua base [Nota 50].

IV

Embora Andrew Lang tenha combatido vivamente essa teoria de Frazer, a que ele propõe em suas últimas obras [Nota 51] aproxima-se dela em mais de um ponto. Como Frazer, ele faz o totemismo consistir inteiramente na crença numa espécie de consubstancialidade do homem e do animal. Mas explica-a de outro modo.

Deriva-a inteiramente do fato de o totem ser um nome. Tão logo houve grupos humanos constituídos [Nota 52], cada um deles teria sentido a necessidade de distinguir uns dos outros os grupos vizinhos com os quais se relacionava e, com essa finalidade, lhes teria dado nomes diferentes. Esses nomes foram tomados preferencialmente da fauna e da flora circundantes, porque animais e plantas podem ser facilmente designados por meio de gestos ou representados por desenhos [Nota 53]. As semelhanças mais ou menos precisas que os homens podiam ter com este ou aquele animal ou planta determinaram a forma como essas denominações coletivas foram distribuídas entre os grupos [Nota 54].

Ora, é um fato conhecido que, “para espíritos primitivos, os nomes e as coisas designadas por esses nomes estão unidos por uma relação mística e transcendental" [Nota 55]. Por exemplo, o nome que um indivíduo tem não é considerado uma simples palavra, um signo convencional, mas parte essencial do próprio indivíduo. Assim, quando se

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tratava de um nome de animal, o homem que o tinha devia necessariamente crer que ele próprio possuía os atributos mais característicos desse animal. Essa crença propagou-se tanto mais facilmente quanto mais se tornavam remotas e se apagavam das memórias as origens históricas de tais denominações. Mitos se formaram para representar melhor aos espíritos essa estranha ambigüidade da natureza humana. Para explicá-la, imaginou-se que o animal era o antepassado do homem ou que ambos descendiam de um ancestral comum. Assim teriam sido concebidos os laços de parentesco que uniriam cada clã à espécie de coisa cujo nome é o seu. Ora, uma vez explicadas as origens desse parentesco fabuloso, parece a nosso autor que o totemismo não tenha mais mistério.

Mas de onde vem, então, o caráter religioso das crenças e das práticas totêmicas? Pois o fato de o homem crer- se um animal de tal espécie não explica por que ele atribui a essa espécie virtudes maravilhosas, nem, sobretudo, por que dedica às imagens que a simbolizam um verdadeiro culto. A essa questão, Lang dá a mesma resposta que Frazer: ele nega que o totemismo seja uma religião. “Não encontro na Austrália, diz ele, nenhum exemplo de práticas religiosas tais como as que consistem em rezar, nutrir ou sepultar o totem [Nota 56].” Apenas numa época posterior, e quando já estava constituído, é que o totemismo teria sido como que atraído e envolvido por um sistema de concepções propriamente religiosas. Segundo uma observação de Howitt [Nota 57], quando os indígenas procuram explicar as instituições totêmicas, eles não as atribuem nem aos próprios totens, nem a um homem, mas a algum ser sobrenatural, como Bunjil ou Baiame. “Se, diz Lang, aceitar-mos esse testemunho, uma fonte do caráter religioso do totemismo nos é revelada. O totemismo obedece aos decretos divinos dados por Zeus a Minos.” Ora, a noção dessas grandes divindades formou-se, segundo Lang, fora do sistema totêmico; este, portanto, não seria por si mes

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mo uma religião, apenas teria se colorido de religiosidade em contato com uma religião propriamente dita.

Mas esses mitos mesmos vão contra a concepção que Lang faz do totemismo. Se os austrralianos só tivessem visto no totem uma coisa humana e profano, não lhes teria vindo a idéia de fazer dele uma instituição divina. Se, ao contrário, sentiram a necessidade de relacioná-lo a uma divindade, é que lhe reconheciam um caráter sagrado. Essas interpretações mitológicas demonstram, pois, a natureza religiosa do totemismo, mas não a explicam.

Aliás, o próprio Lang percebe que essa solução não poderia ser suficiente. Ele reconhece que as coisas totêmicas são tratadas com um respeito religioso [Nota 58]; que sobretudo o sangue do animal, como também o do homem, é objeto de múltiplas interdições, ou, como ele diz, de tabus que essa mitologia mais ou menos tardia é incapaz de explicar [Nota 59]. Mas de onde elas provêm então? Eis em que termos Lang responde a essa questão: “Assim que os grupos com nomes de animais desenvolveram as crenças universalmente difundidas sobre o wakan ou o mana, ou sobre a qualidade mística e sagrada do sangue, os diferentes tabus totêmicos devem igualmente ter aparecido.“ [Nota 60] As palavras wakan e mana, como veremos no capítulo seguinte, implicam a noção mesma de sagrado: uma é tomada da língua dos Sioux, a outra, dos povos melanésios. Explicar o caráter sagrado das coisas totêmicas postulando esse caráter, é responder à questão com a questão. O que seria preciso mostrar é de onde provém a noção de wakan e de que maneira se aplicou ao totem e a tudo que dele deriva. Enquanto essas duas questões não forem resolvidas, nada foi explicado.

V

Passamos em revista as principais explicações que foram dadas das crenças totêmicas [Nota 61], esforçando-nos respeitas a individualidade de cada um. Mas, agora que esse

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Exame terminou, podemos constatar que uma crítica comum vale indistintamente para todos esses sistemas.

Se nos ativermos à letra das fórmulas, eles parecem dividir-se em duas categorias. Uns (Frazer, Lang) negam o caráter religioso do totemismo, o que significa, aliás, negar os fatos. Outros o reconhecem, mas julgam poder explicá-lo derivando-o de uma religião anterior, da qual o totemismo teria surgido. Em realidade, essa distinção é apenas aparente: a primeira categoria reaparece na segunda. Nem Frazer nem Lang puderam manter seu princípio até o fim e explicar o totemismo como se ele não fosse uma religião. Pela força das coisas, foram obrigados a introduzir em suas explixações noções de natureza religiosa. Acabamos de ver como Lang teve de fazer intervir a idéia de sagrado, isto é, a idéia cardinal de toda religião. Frazer, por seu lado, tanto na primeira como na segunda teoria que propôs, apela abertamente para a idéia de alma ou de espírito, pois, segundo ele, o totemismo viria ou de os homens acreditarem poder colocar sua alma em segurança num objeto exterior, ou de atribuírem o fato da concepção a uma espécie de fecundação espiritual, cujo agente seria um espírito. Ora, a alma, e o espírito mais ainda, são coisas sagradas, objetos de ritos; as noções que os exprimem são, portanto, essencialmente religiosas, e assim, por mais que Frazer faça o totemismo um sistema puramente mágico, também ele só consegue explicá-lo em função de uma outra religião.

Mas mostramos as insuficiências tanto do naturismo como do animismo; portanto, não se pode recorrer a eles, como fizeram Tylor e Jevons, sern se expor às mesmas objeções. No entanto, nem Frazer nem Lang parecem entrever a possibilidade de uma outra hipótese [Nota 62]. Por outro lado, sabemos que o totemismo está estreitamente ligado à organização social mais primitiva que conhecemos e, muito provavelmente, que pode ser conhecida. Portanto, supor que ele foi precedido de uma outra religião que não diferia dele apenas em grau, é sair dos dados da observação para

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entrar no domínio das conjeturas arbitrárias e inverificáveis. Se quisermos permanecer em concordância com os resultados anteriormente obtidos, devemos, ao mesmo tempo que afirmamos a natureza religiosa do totemismo, impedir-nos de reduzi-lo a uma religião diferente de si mesmo. Não que seja o caso de atribuir-lhe como causa idéias que não seriam religiosas. Mas, entre as representações que integram a gênese de que ele resultou, pode haver algumas que invocam por si mesmas e diretamente o caráter religioso. São estas que devemos pesquisar.

Nota de Rodapé

[Inicio da Nota de roda pé *] O medo (foi o que) primeiro fez os deuses no mundo, isto é, suscitou a idéia da divindàde. Cf. tradução de Paulo Rónai. (N. do T.) [Final da Nota de roda pé *]